Tenho ouvido, recentemente (não tão recentemente assim), o
argumento de que não “se vira” gay, mas “se nasce” assim. Há tempos, este
argumento me incomoda e, enfim, resolvi escrever um pouco sobre isso, menos no
sentido de ter a “última palavra”, mas sobretudo pelo desejo de elaborar
melhor, à medida que escrevo e compartilho algumas ideias.
Num primeiro momento, reconheço que o argumento “nasci
assim” tranquiliza muitas pessoas que sofrem na pele a dolorosa dúvida: Por que
não sou “normal”? Por que sou “diferente”? ou ainda “Porque não sou o que
esperavam de mim?”. Ao dizer que “se nasce assim”, cessam-se algumas dúvidas,
evitam-se alguns questionamentos e pode-se simplesmente viver “a vida como ela é”.
O argumento “nasci assim” também é bastante útil para calar
a boca de quem acha que, com programa de reabilitação, reeducação, ressocialização
(ou até mesmo “exorcismo”) pode-se curar, reeducar ou converter, alguém que se
define como homossexual em heterossexual. Ou seja, se “nasci assim”, isso é da
“minha natureza”, portanto, não há como mudar.
O argumento “nasci assim” mostra-se, portanto, bastante
útil, seja para tranquilizar alguns, seja para reagir a fundamentalistas. Com
relação à tranquilidade de cada um, não tenho o que falar. Prefiro parafrasear
Caetano Veloso quando diz que a verdade pode ser nosso “dom de iludir” e “Cada
um sabe a dor e a delícia de ser o que é!” Com relação às propostas de
“reeducação”, antes de se perguntar se elas são efetivas ou não, a questão que
deveria ser feita, do ponto de vista ético, é sobre que bases esta pergunta se
sustenta? Qual seria sua função? Para quem é importante a “conversão”? Para que
serviria esta conversão? Poderia ser ela também proposta em sentido inverso, ou
seja, de hetero a homo?
Num vídeo que assisti, recentemente, uma senhora, ao
responder que as pessoas não nascem homossexuais, foi interpelada com a
desconcertante pergunta: “E quando a senhora virou heterossexual?” E ela
respondeu prontamente: “Aos 20 anos”. “E o que a senhora era antes?”, perguntou
o repórter. “Virgem”, respondeu a senhora. Essa resposta aparentemente simples
ou ingênua guarda, para mim, uma profunda riqueza. (Se quiser ver o vídeo, clique aqui )
Mas, tenho que reconhecer que, nesse jogo retórico, o que me
preocupa mesmo são os efeitos colaterais do argumento “nasci assim”, entre
eles: a naturalização da sexualidade (como se o destino do nosso desejo fosse
predeterminado e imutável) e a institucionalização de um terceiro sexo (“seres”
com traços comuns entre si, essencialmente diferentes dos outros dois “seres” (homens
e mulheres) que, por definição, são tomados como “referência normativa”).
A biologia pode ser um bom remanso para alguns. Mas,
certamente, não o é para todos/as.
Por isso, em substituição ao argumento “nasci assim”, prefiro
a premissa freudiana de que todos nascemos bissexuais (tri, tetra ou pan) e que
a construção social do nosso desejo se dá na negociação com os outros. Para
quem quer explorar mais essa idéia freudiana sobre bissexualidade, recomendo a
leitura de breve texto de Paulo Ceccarelli, em artigo publicado em 2000, na
Revista Somos (http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=240). De modo simplificado,
o que gosto nesta premissa freudiana é que ela aposta na ideia de que nascemos
livres e, aos poucos, vamos sendo educados, moldados, regulados e passamos a
acreditar, especialmente a partir da modernidade, que “somos” algo, coerente e
idêntico a si e que a mudança é algo difícil, que ocorre às vezes só na
superfície e não nas profundezas. Essa é uma ideia muito potente e que
certamente gera muito mais sofrimento do que prazer. Penso que o catálogo de
modos de ser podem ser sempre mais amplos do que sonha nossas vãs ideologias.
Apostar na ideia da “liberdade original” da nossa sexualidade, nos permite ser
protagonistas de nossas escolhas e potencializa nossa criatividade.
É interessante notar que o próprio campo de saber biomédico,
já reconhece, há algum tempo, que nossa carga genética não determina sempre e
em qualquer circunstância nossos interesses, habilidades e práticas. O “meio”
(nosso encontro com o outro) orquestra este jogo e pode transformar, inclusive,
limitação em superação ou destino em sucessão de acasos que se reiventam.
Apesar de não estar plenamente satisfeito com as nomeações
existentes, entre opção (escolha consciente) e natureza (imposição
inquestionável e definitiva), prefiro apostar em termos mais híbridos como
“condição” ou “orientação”, na medida em que elas apontam mais para a
experiência diversa e permitem maior flexibilidade.
Parafraseando Simone de Beauvoir e inspirado no lindo filme sobre
a vida de sua amiga íntima, a escritora Violette Leduc, prefiro pensar que: não
se nasce homossexual, heterossexual, bissexual ou mesmo sexual... Torna-se!
E para os “salva vidas de plantão”, que acham que sofrimento
se resolve com ajuste ou enquadramento, é importante lembrar que os mecanismos
pelos quais modelamos a nossa sexualidade não são todos conscientes. Portanto,
podemos identificar processos a partir dos quais fomos cotidianamente educados
a partir de uma matriz cultural heteronormativa que se reafirma em processos de
educação formal ou na simbologia midiática, porém não se pode produzir
re-educação sexual de modo voluntário, formal ou consciente.
Enfim, tá na hora de voltarmos a apostarmos mais na
liberdade e na criatividade humana e menos nas certezas confortantes ou
reativas.