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8 de setembro de 2014

Opinião | Não sou Gabriela, nem borboleta. Portanto, não nasci assim, nem virei nada | Por Benedito Medrado

Tenho ouvido, recentemente (não tão recentemente assim), o argumento de que não “se vira” gay, mas “se nasce” assim. Há tempos, este argumento me incomoda e, enfim, resolvi escrever um pouco sobre isso, menos no sentido de ter a “última palavra”, mas sobretudo pelo desejo de elaborar melhor, à medida que escrevo e compartilho algumas ideias.

Num primeiro momento, reconheço que o argumento “nasci assim” tranquiliza muitas pessoas que sofrem na pele a dolorosa dúvida: Por que não sou “normal”? Por que sou “diferente”? ou ainda “Porque não sou o que esperavam de mim?”. Ao dizer que “se nasce assim”, cessam-se algumas dúvidas, evitam-se alguns questionamentos e pode-se simplesmente viver “a vida como ela é”.

O argumento “nasci assim” também é bastante útil para calar a boca de quem acha que, com programa de reabilitação, reeducação, ressocialização (ou até mesmo “exorcismo”) pode-se curar, reeducar ou converter, alguém que se define como homossexual em heterossexual. Ou seja, se “nasci assim”, isso é da “minha natureza”, portanto, não há como mudar.

O argumento “nasci assim” mostra-se, portanto, bastante útil, seja para tranquilizar alguns, seja para reagir a fundamentalistas. Com relação à tranquilidade de cada um, não tenho o que falar. Prefiro parafrasear Caetano Veloso quando diz que a verdade pode ser nosso “dom de iludir” e “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é!” Com relação às propostas de “reeducação”, antes de se perguntar se elas são efetivas ou não, a questão que deveria ser feita, do ponto de vista ético, é sobre que bases esta pergunta se sustenta? Qual seria sua função? Para quem é importante a “conversão”? Para que serviria esta conversão? Poderia ser ela também proposta em sentido inverso, ou seja, de hetero a homo?

Num vídeo que assisti, recentemente, uma senhora, ao responder que as pessoas não nascem homossexuais, foi interpelada com a desconcertante pergunta: “E quando a senhora virou heterossexual?” E ela respondeu prontamente: “Aos 20 anos”. “E o que a senhora era antes?”, perguntou o repórter. “Virgem”, respondeu a senhora. Essa resposta aparentemente simples ou ingênua guarda, para mim, uma profunda riqueza. (Se quiser ver o vídeo, clique aqui )

Mas, tenho que reconhecer que, nesse jogo retórico, o que me preocupa mesmo são os efeitos colaterais do argumento “nasci assim”, entre eles: a naturalização da sexualidade (como se o destino do nosso desejo fosse predeterminado e imutável) e a institucionalização de um terceiro sexo (“seres” com traços comuns entre si, essencialmente diferentes dos outros dois “seres” (homens e mulheres) que, por definição, são tomados como “referência normativa”).

A biologia pode ser um bom remanso para alguns. Mas, certamente, não o é para todos/as.
Por isso, em substituição ao argumento “nasci assim”, prefiro a premissa freudiana de que todos nascemos bissexuais (tri, tetra ou pan) e que a construção social do nosso desejo se dá na negociação com os outros. Para quem quer explorar mais essa idéia freudiana sobre bissexualidade, recomendo a leitura de breve texto de Paulo Ceccarelli, em artigo publicado em 2000, na Revista Somos (http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=240). De modo simplificado, o que gosto nesta premissa freudiana é que ela aposta na ideia de que nascemos livres e, aos poucos, vamos sendo educados, moldados, regulados e passamos a acreditar, especialmente a partir da modernidade, que “somos” algo, coerente e idêntico a si e que a mudança é algo difícil, que ocorre às vezes só na superfície e não nas profundezas. Essa é uma ideia muito potente e que certamente gera muito mais sofrimento do que prazer. Penso que o catálogo de modos de ser podem ser sempre mais amplos do que sonha nossas vãs ideologias. Apostar na ideia da “liberdade original” da nossa sexualidade, nos permite ser protagonistas de nossas escolhas e potencializa nossa criatividade.

É interessante notar que o próprio campo de saber biomédico, já reconhece, há algum tempo, que nossa carga genética não determina sempre e em qualquer circunstância nossos interesses, habilidades e práticas. O “meio” (nosso encontro com o outro) orquestra este jogo e pode transformar, inclusive, limitação em superação ou destino em sucessão de acasos que se reiventam.

Apesar de não estar plenamente satisfeito com as nomeações existentes, entre opção (escolha consciente) e natureza (imposição inquestionável e definitiva), prefiro apostar em termos mais híbridos como “condição” ou “orientação”, na medida em que elas apontam mais para a experiência diversa e permitem maior flexibilidade.

Parafraseando Simone de Beauvoir e inspirado no lindo filme sobre a vida de sua amiga íntima, a escritora Violette Leduc, prefiro pensar que: não se nasce homossexual, heterossexual, bissexual ou mesmo sexual... Torna-se!

E para os “salva vidas de plantão”, que acham que sofrimento se resolve com ajuste ou enquadramento, é importante lembrar que os mecanismos pelos quais modelamos a nossa sexualidade não são todos conscientes. Portanto, podemos identificar processos a partir dos quais fomos cotidianamente educados a partir de uma matriz cultural heteronormativa que se reafirma em processos de educação formal ou na simbologia midiática, porém não se pode produzir re-educação sexual de modo voluntário, formal ou consciente.

Enfim, tá na hora de voltarmos a apostarmos mais na liberdade e na criatividade humana e menos nas certezas confortantes ou reativas.


* Benedito Medrado é docente da UFPE, um dos fundadores do Instituto PAPAI e coordenador do Gema/UFPE.