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6 de abril de 2012

Opinião | Dando a outra face | por Tiago Corrêa


A defesa da laicidade do Estado não pode descuidar da complexidade das práticas religiosas.
Por Tiago Corrêa

Não há período mais paradoxalmente propício do que a semana santa para refletirmos sobre relações entre política e religião baseadas no princípio constitucional da laicidade. Sim, porque a existência de afrontas desavergonhadas à efetivação de um Estado Democrático de Direito (portanto, laico) no Brasil, por parte de setores religiosos incrustrados nos poderes executivo, legislativo e judiciário já não é nenhuma novidade. Ainda que essas iniciativas lamentáveis sejam hoje mais associadas a membros do legislativo ligados a diversas denominações evangélicas em posicionamento conservadores – para dizer o mínimo – no campo dos direitos reprodutivos e sexuais (como no que diz respeito ao aborto e à homossexualidade), a presença da religiosidade no Estado brasileiro remonta às suas origens, quando da primeira constituição, de 1824, em que se adotou o catolicismo como religião oficial do Império.
A laicidade, pedra basilar das democracias ocidentais, é o princípio de ausência de envolvimento da religião em assuntos do governo e, por outro lado, do governo sobre assuntos religiosos. Apesar de quando invocada, ser propalada aos quatro ventos como censura, ou como atentado à liberdade de expressão por aqueles que parecem querer viver sob um Estado fundamentalista, tem como norte a salvaguarda da própria liberdade religiosa, ao retirar do Estado a competência para interferir sobre as práticas religiosas. Adotada – em tese – pelo Brasil desde a proclamação da República, com a Constituição de 1891 e mantida pela Constituição atual, trata-se de um princípio formal, cuja efetivação ainda é um processo frágil e sujeito a riscos.
Que o digam os membros de cultos afro-brasileiros, criminalizados e perseguidos por autoridades policiais durante mais da metade do século XX, sob alegações como falsa medicina, ou charlatanismo, considerados como crimes contra a Saúde Pública. Ou, então, mais recentemente a concordata firmada em 2008 pelo Estado brasileiro com o Vaticano, garantindo alguns interesses da Igreja Católica no Brasil.
O ataque já nem tão recente assim dos neopentecostais aos direitos sexuais e reprodutivos são apenas a “ponta do iceberg” de um processo mais insidioso de violação do princípio de laicidade do Estado. Eleitos para postos minoritárias e majoritários a partir de seus currais eleitorais de fiéis espraiados pelo mais diversos cantos do país, capitalizados pela arrecadação de recursos financeiros a partir da exploração da benevolência nas doações daqueles, instrumentalizados midiaticamente com emissoras de rádio e televisão, os neopetencostais tem sido em certa medida bem sucedidos em aparelhar o Estado e pautar a agenda política nacional com base em suas convicções religiosas.
Não à toa, tem despertado reações que rendundam por vezes em antagonismos do meu ponto de vista simplificadores e prejudiciais. Englobando uma série de denominações sob o rótulo de “evangélicos”, atribuindo a esses em bloco um conjunto de práticas antidemocráticas, descuida-se por um lado da complexidade religiosa dos cristianismos e esquece-se de ameaças à laicidade advindas de membros de outros credos religiosos.
Há sim, dentre os religiosos arbitrariamente agrupados sob essa denominação, quem defenda um distanciamento do Estado dos assuntos religiosos. Como, só para citar um exemplo, o pastor Marcos Alves da Silva, que eu tive a felicidade de assistir palestrar no VII Seminário de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais no Congresso Nacional, em 2010, atacando a interferência religiosa sobre a discussão da união civil entre pessoas do mesmo sexo. Seriam minorias? Talvez. Mas minha tia, alguns amigos e minha empregada doméstica, para ficar no meu círculo pessoal, parecem indicar que cristianismo e homofobia não andam sempre de mãos dadas. No entanto, no espaço institucionalizado da política, os Malafaias, Bolsonaros e Macedos, dentre outros, parecem monopolizar a representação política dos “evangélicos”, associando-os a práticas pouco afeitas aos princípios democráticos resguardados em nossa Constituição.
Algumas semanas atrás, um episódio me alertou sob possíveis riscos dos usos desse maniqueísmo entre religiosos e não-religiosos no país. Em Recife, a celebração de um culto pelo pastor e deputado Silas Malafaia, célebre pelas suas declarações autoritárias e homofóbicas, despertou em algumas pessoas a indignação e a vontade de se articular para um protesto no local da celebração, o Marco Zero. O culto, patrocinado pela Rede Globo, que diante da perda de Ibope para o canal televisivo da Igreja Universal do Reino de Deus (a rede Record) vem buscando atrair os “evangélicos”, era, apesar do cargo legislativo e dos recursos advindos de um empresa de telecomunicação, um exercício legítimo da liberdade religiosa dos seus praticantes. O protesto, caso tivesse acontecido, facilmente poderia ser explorado como um atentado contra essa liberdade, com dimensões possivelmente desastrosas.
Se, por um lado, tratava-se de uma indignação que em nada me é estranha, por outro a ausência de uma estratégia mais refletida e elaborada para expressar essa indignação parecia reproduzir a retórica do ódio do próprio pastor e deputado. Ao condenar práticas homossexuais em defesa da “família e das leis de Deus” (que família? Que Deus?), essa retórica gera naqueles mesmo que condena uma reação em que celebração de um culto passa a ser compreendida como uma agressão, opondo um eles versus nós.
Será que em nossa indignação não estamos gastando nossos parcos esforços brigando contra adversários, ao invés de criar outras alianças fortuitas, ali também dentre aqueles que recusamos como “evangélicos” ou religiosos? Dando voz àqueles que revestem seu autoritarismo de mantos sagrados e deixando de escutar outros para os quais suas religiões não se contrapõem a princípios democráticos? Talvez seja a hora de dar a outra face, não tanto como um ato passivo de aceitação da violência que nos é imposta, mas para virar àqueles que, como nós, condenam fundamentalismos e defendem um Estado Democrático de Direito.
É o caso por exemplo, das Católicas pelo Direito de Decidir, grupo de mulheres que defendem o direito ao aborto e a livre expressão sexual. É o caso da teóloga pernambucana e feminista, Ivone Gebara. E de tantas outras teólogas feministas eteólogos gays. Afinal, não somos contra a liberdade religiosa, somos todos e todas a favor de um Estado laico.
E, no que diz respeito aos maniqueísmo fáceis, talvez seja a hora de questionar o que é esquerda e o que é direita em relação à laicidade. Pois, como apontam a nomeação do senador Marcelo Crivella para o Ministério da Pesca, o veto ao kit antihomofobia do Ministério da Educação,  a proibição da divulgação em rede aberta de campanhas de prevenção as DST/Aids voltadas aos homossexuais, o receio ante o tema do aborto,  o governo do PT, no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, lembra mais a TFP.