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30 de março de 2012

Opinião | Tá no sangue? | Por Aída Carneiro


Serviços de saúde mantem proibição de doação de sangue por homossexuais sob justificativas pretensamente científicas.

Em 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a Resolução-RDC nº 153 na qual se afirma que em casos de“situações de risco acrescido, serão inabilitados por um ano, como doadores de sangue ou hemocomponentes, os candidatos que nos 12 meses precedentes tenham sido expostos a uma das situações abaixo: homens e ou mulheres que tenham feito sexo em troca de dinheiro ou de drogas, e os parceiros sexuais destas pessoas. [...] Homens que tiveram relações sexuais com outros homens e ou as parceiras sexuais destes”.


De cara, um ponto que salta aos olhos é o fato de condenarem a prática, mas não o sujeito. Visto que homossexuais e profissionais do sexo podem doar sangue, desde que não tenham vida sexual ativa.  Coincidentemente, o discurso cristão condena o pecado, mas não o pecador (desde que esse reconheça o “erro” e se arrependa). Outro aspecto intrigante é a menção dos conceitos de grupo de risco e comportamento de risco.

No início da epidemia de HIV/AIDS pouco se sabia sobre a doença e esta foi diretamente associada a grupos de sujeitos que apresentavam um maior número de infectados: gays, profissionais do sexo e usuários de drogas. Com o passar do tempo, por esses sujeitos não constituírem um risco em si, o foco foi direcionado para suas práticas.

Atualmente, pressupondo um “conjunto de fatores individuais, sociais e programáticos que incidem diretamente sobre a maior ou menor exposição de homens e mulheres ao HIV/AIDS”, o Programa Nacional de DST e AIDS adota, então, o conceito de “vulnerabilidade”, por considerar que os conceitos anteriormente citados não davam conta da epidemia em toda sua complexidade.

No entanto, é visível  uma dificuldade em implementar tais discussões atuais nos documentos que regulamentam os procedimentos hemoterápicos e que vão dirigir as práticas cotidianas dos profissionais de saúde. Por exemplo, em  2006, a ANVISA publicou nota em que mantém a decisão citada acima da Resolução RDC nº 153/2004 baseada em “evidências científicas”. Segundo a mesma, homossexuais masculinos e bissexuais praticam em maior escala o sexo anal: “HSH continuam tendo comportamento de risco acrescido para aquisição de HIV devido à maior freqüência de relações sexuais anais que originam lesões dérmicas, porta de entrada para o vírus [...]”.

O interessante neste trecho é que a restrição parece se justificar por um tipo de ato sexual que os homossexuais praticam em demasia. Como se mulher não tivesse cu. Ou, ainda, que casais heterossexuais não gostassem ou praticassem sexo anal. Afinal, como diz o jargão de militantes do movimento LGBT: o cu é o que nos une.

Na mesma nota, há um esclarecimento acerca da chamada “janela imunológica”, definida como o “período compreendido entre a infecção pelo vírus e a produção de marcadores detectáveis pelos testes”. Em outras palavras, o período em que o teste é incapaz de afirmar se o sujeito tem ou não o vírus HIV. No Brasil, a “janela imunológica para a infecção pelo HIV é de aproximadamente 22 dias”. Então, se a janela imunológica é de, aproximadamente, 22 dias, porque estabelecer um período de abstinência de 1 ano? E só para esses sujeitos? Ou pior, porque ainda estamos falando em abstinência? Não seria mais coerente focar se houve ou não relação sexual insegura (independente de que tipo de orientação sexual, sendo paga ou não)?

Ainda nesta mesma nota, a ANVISA, na tentativa de argumentar que a decisão não é discriminatória nem baseada em preconceitos, atenta que não é apenas essa parcela da população que é impossibilitada de doar sangue. Mas também “diabéticos, pacientes portadores de doenças transmitidas pelo sangue” etc. Ainda que se negue, fica evidente a noção da homossexualidade e prostituição ainda como doença, haja vista a comparação que é feita.

No ano passado, o Ministério da Saúde publicou Portaria de nº 1.353 em que afirma no parágrafo 5º:  ”A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue por não constituir risco em si própria”. Mas, mantém inapto para doação de sangue os/as profissionais do sexo, os HSH e, acrescenta: “que tenha feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos ou seus respectivos parceiros sexuais”.

Ainda que haja um esforço em reconhecer que a orientação sexual por si só não deve ser usada como critério de aptidão (ou não) para doação de sangue, acaba-se por reiterar todo o discurso contraditório dos documentos anteriores,  proibindo ainda a doação por pessoas que não têm parceiros/as fixos. E aí fica a pergunta: o que tais sujeitos podem ter em comum? Sexo para além do casamento, reprodução e transmissão de patrimônio! Eles ferem as premissas da cultura heterossexual dominante. Este debate, portanto, ainda que se queira negar por meios dos documentos oficiais, não se resume a índices e estatísticas (que não são, diga-se, uma constatação, mas produção de verdade) sobre doação ou não por homossexuais. Mas, sobretudo, a criação de hierarquias, em que certas práticas sexuais são legitimadas, em detrimento de outras.